Onde o Vinho Começa: O Ciclo da Videira na Borgonha

Costuma-se dizer que um grande vinho nasce na vinha — e na Borgonha, isso nunca foi tão verdade. Região de tradição milenar e de terroirs reconhecidos mundialmente, aqui cada detalhe importa. Muito antes de o vinho chegar à taça, existe um trabalho minucioso que começa na terra, com o acompanhamento cuidadoso de cada fase do ciclo da videira.

Sou Aline, brasileira, especialista em vinhos da Borgonha e residente na região há mais de 15 anos. Convivo diariamente com viticultores que tratam suas vinhas como verdadeiras joias, e hoje quero te levar a conhecer esse processo que poucos veem, mas que é essencial para entendermos a alma de um vinho borgonhês: o ciclo da videira na Borgonha

O Ritmo da Natureza

O ciclo da videira é um processo anual, regido pelas estações do ano. É ele que dita o tempo do trabalho na vinha, e cada etapa exige decisões precisas e uma escuta atenta da natureza. Conhecer esse ciclo é essencial para compreender por que os vinhos da Borgonha têm tanta personalidade e ligação com o terroir.

Repouso Vegetativo (Inverno)

Durante o inverno, a videira entra em dormência. Após a queda das folhas, a planta descansa — mas o trabalho do viticultor continua. É nesse momento que acontece a poda, chamada de taille em francês, fundamental para preparar a videira para o próximo ciclo.

A poda tem como função equilibrar a planta, controlar o rendimento e direcionar a sua energia para os brotos mais promissores. É um gesto de previsão e planejamento, baseado na experiência e no conhecimento acumulado ao longo de gerações.

O Choro da Videira (fim do inverno)

Com a elevação das temperaturas no final do inverno e início da primavera, a seiva volta a circular. Pequenas gotas surgem nos cortes deixados pela poda — um fenômeno conhecido como “choro da videira”. Esse é o primeiro sinal de que o ciclo recomeçou, e de que o vinhedo está acordando.

Brotamento ou Débourrement (Início da primavera)

O brotamento, chamado de débourrement, costuma ocorrer em abril. É uma das fases mais delicadas do ciclo. Os primeiros brotos são extremamente sensíveis, e qualquer geada tardia pode comprometer a colheita do ano.

Nessa etapa, o viticultor precisa estar alerta, pronto para proteger as plantas com métodos que vão desde o uso de velas até sistemas de aquecimento, dependendo da extensão da vinha e das condições climáticas.

Crescimento e floração

Com o avanço da primavera, os ramos e folhas se desenvolvem, dando lugar à floração — ou floraison — geralmente no mês de junho. Este momento é crucial: ele determina a quantidade e a qualidade dos cachos que serão formados.

A floração exige condições climáticas estáveis. Chuvas intensas ou variações bruscas de temperatura podem interferir na fecundação das flores, resultando em uma produção menor ou irregular.

Formação dos cachos

As flores fecundadas dão lugar às uvas. Os cachos se formam, pequenos e ainda verdes, enquanto a planta canaliza sua energia para o desenvolvimento dos frutos. É uma fase de construção silenciosa, em que cada grão começa a carregar o potencial da safra.

Véraison

Entre julho e agosto, as uvas passam por uma transformação visível: mudam de cor, passando do verde para o roxo (no caso das tintas) ou dourado (no caso das brancas). Esse fenômeno é chamado de véraison.

É aqui que a maturação realmente começa. Os níveis de açúcar aumentam, a acidez diminui e os sabores começam a se concentrar. O viticultor acompanha tudo de perto, medindo, provando e observando.

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Maturação

Em agosto e setembro, as uvas atingem a maturação completa. Os produtores monitoram os índices de açúcar, acidez e taninos para decidir o momento ideal da colheita. Essa decisão é estratégica: cada dia a mais ou a menos na vinha pode alterar profundamente o perfil do vinho.

Na Borgonha, apesar da colheita manual não ser obrigatória por lei, ela é amplamente preferida. A seleção feita manualmente permite colher apenas os cachos mais saudáveis e maduros, garantindo a qualidade do vinho desde sua origem.

Vindima

A colheita normalmente acontece em setembro, mas pode variar conforme o ano. Em safras mais quentes, começa no final de agosto; em anos frios ou chuvosos, pode se estender até outubro. Cada safra é única, e o calendário da vindima reflete isso.

Após a colheita, as folhas secam, caem, e a seiva volta ao solo. O ciclo se encerra, pronto para recomeçar quando o inverno der lugar à nova primavera.

Conclusão sobre o ciclo da videira: um trabalho de precisão

Ao longo de todo esse processo, o viticultor acompanha, intervém e respeita. A natureza comanda, mas o homem guia com sensibilidade. É por isso que, na Borgonha, fazer vinho é comparado à alta costura: são os detalhes que fazem a diferença.

Cuidar da vinha é um ato de paciência e dedicação. E quando, finalmente, o vinho é aberto, ele traz consigo não só o sabor da uva, mas a história de um ano inteiro de trabalho na terra.

Formada em Degustação pelo Terroir, na Universidade de Dijon. Há 11 anos assessorando brasileiros na Borgonha. Especialista em vinhos da Borgonha e visitas na região.